A tese do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), de que ocultação de cadáver deve ser considerado crime permanente e, portanto, não ser passível de anistia, deve receber o apoio da maioria dos integrantes da corte, quando o mérito for a julgamento no plenário. A disposição dos ministros se soma a outros episódios que contestam privilégios dos militares, em um golpe inesperado para as Forças Armadas.
Além da decisão de Dino, a prisão de generais suspeitos de envolvimento em tentativa de golpe, e o entendimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de que atestados de óbito de mortos pela ditadura devem indicar que foram vítimas de violência do Estado, revelam uma mudança de ventos importante para os militares, algo inédito desde a redemocratização, segundo especialistas.
No dia 10 de dezembro, o CNJ aprovou regra segundo a qual certidões de óbito de vítimas do regime militar devem informar que a pessoa faleceu em decorrência de “morte não natural, violenta, causada pelo Estado (…) no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”.
Quatro dias depois, a Polícia Federal (PF) prendeu o ex-ministro da Defesa e general Walter Braga Netto, por suspeita de participação nos atos relacionados à tentativa de golpe de Estado. O general quatro estrelas também é acusado de obstrução de Justiça, por haver tentado obter dados sigilosos da delação de Mauro Cid, que foi ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Em 15 de dezembro, Dino reconheceu a repercussão geral da ação que discute a possibilidade do não reconhecimento da anistia em casos de ocultação de cadáver, considerada um crime permanente.
O ministro deve levar a decisão ao plenário virtual já em fevereiro, após o término do recesso do Poder Judiciário. Neste primeiro momento, porém, os ministros irão discutir apenas se a decisão valerá para os demais casos semelhantes.
O mérito será julgado em um momento posterior. A expectativa entre interlocutores da corte é que o processo seja analisado em conjunto com uma ação que está sob a relatoria do ministro Dias Toffoli e discute a revisão da Lei da Anistia.
Promulgada em 1979, a norma perdoou aqueles que “cometeram crimes políticos ou conexos”, deixando impune as violações cometidas pelos militares, ao mesmo tempo que permitiu a volta das pessoas que estavam exilados no exterior.
Para o professor João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos, a prisão de militares como Braga Netto é inédita e mostra uma quebra de paradigma importante no Brasil pós-redemocratização.
“Na história do Brasil, inúmeros generais foram presos ou porque tentaram uma rebelião militar que não deu certo ou porque venceram e, então, puniram aqueles que tentaram impedir aquele movimento. Mas sempre foram prisões temporárias, feitas por militares e depois revogadas por militares”, afirma.
“O que tem de novo agora é que, desde a Constituição de 1988, temos um arcabouço civil, um regime civil. E algo importante, mas que tem sido pouco destacado, é a Polícia Federal e o poder que a Constituição de 1988 lhe dá. Dela, o caso vai para a Procuradoria-Geral da República e depois para o Supremo Tribunal Federal, que também é civil.”
Para Glenda Mezarobba, cientista política do Insper que trabalhou como consultora sênior da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a prisão de generais surpreende e é um sinal de que as instituições brasileiras estão saudáveis.
“É relevante pois sinaliza que nenhum indivíduo, independentemente da posição social, do cargo que ocupe, seja no serviço público, seja na iniciativa privada, está acima dos demais perante a lei e que a ninguém é assegurado o direito da impunidade”, diz, ao lembrar que desde o fim da ditadura nenhum general havia sido preso.
Além disso, a manifestação de Dino sobre a impossibilidade de anistia para crimes cometidos pela ditadura, argumenta, revela um Judiciário olhando para militares com uma perspectiva diferente da que víamos até então.
“Até agora, não havia nenhuma manifestação de integrantes do STF nessa direção e com tanta clareza”, afirma, ao lembrar que a decisão não é definitiva e ainda será discutida em plenário. “Mas é uma sinalização que surpreende pois o Brasil tem uma leitura antiquada e equivocada da legislação internacional.”
Mezarobba lembra que, apesar de o Estado brasileiro ter sido condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pela violação de direitos humanos entre 1972 e 1975 para erradicar a Guerrilha do Araguaia e pela detenção, tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog em 1975, o Brasil ainda não processou ou puniu os envolvidos.
“Na verdade, o que percebemos é que o Estado brasileiro deixou de lado e não cuidou, por inúmeras razões, de deveres que tem perante a sociedade e a comunidade internacional”, afirma. “Um deles é o de transformar as instituições e torná-las responsáveis e democráticas. E algumas das instituições sobre as quais era preciso ter havido um olhar cuidadoso são as Forças Armadas e a estrutura policial, todo o aparato que detém o monopólio da violência.”
Em sua opinião, as recomendações do relatório da CNV, publicado em dezembro de 2014, podem funcionar como uma espécie de “bússola” para essa tarefa.
“O Estado brasileiro e as instituições têm uma oportunidade de voltar a esse ponto que ficou mal resolvido”, diz.
Dentre as 29 recomendações do relatório da CNV estão a alteração dos concursos públicos para forças de segurança, com processos de recrutamento que levem em conta conhecimentos sobre direitos humanos, e a modificação do currículo das academias militares e policiais, com alteração de conceitos como democracia e direitos humanos.
Martins Filho vê o momento atual como uma oportunidade sem precedentes que o Brasil tem para avançar e evitar uma cultura de intromissão dos militares na política.
“Poderiam ser tomadas medidas que talvez não fossem imediatas, mas que encaminhariam uma política, que para os militares poderia ser dita, de preservação da própria instituição, evitando intervenções na política, rompendo com algo que existe desde a proclamação da República”, afirma.
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