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A voz do compromisso artístico e a consciência jurídica

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A arte, em qualquer de suas formas — solo ou em parceria — exige mais do que talento: exige pactos invisíveis, maturidade emocional, ética na trajetória e, sobretudo, consciência jurídica.

No universo musical contemporâneo, o que parece brilho nos palcos ou viralização nos clipes muitas vezes se assenta sobre estruturas frágeis, marcadas por vaidades, omissões e disputas silenciosas de protagonismo. 

O que antes se apresentava nas duplas sertanejas como dicotomia entre primeira e segunda voz, agora se reflete também na tensão entre carreira solo e o coletivo que a sustenta. 

A vaidade que antes se travestia de liderança vocal hoje assume a forma da autossuficiência digital, o que antes era o centro do palco, hoje é o feed do artista, e a pergunta permanece: quem sustenta o brilho? 

O artista em carreira solo, por mais autêntico que parece, é produto de uma estrutura complexa: empresários, compositores, arranjadores, produtores, músicos, técnicos, assessores e, especialmente, investidores que, muitas vezes no anonimato, sustentaram os primeiros passos dessa jornada.

Em muitos casos, a formação de carreira é impulsionada por vínculos familiares que antecedem a arte — irmãos que se unem não apenas o sangue, mas também o mesmo tom, a mesma afinação, o mesmo sonho.

Nas duplas formadas por irmãos ou irmãs — presença marcante no universo sertanejo — o casamento das vozes é também um laço de origem, mas mesmo o sangue não imuniza contra o orgulho, ao contrário: quando os conflitos eclodem entre irmãos artistas, a ferida é ainda mais profunda, pois fere não só o pacto musical, mas o próprio afeto ancestral. 

Nestes casos, a linha entre intimidação e contrato, entre amor e interesse, entre memória e vaidade, torna-se tênue e dolorosa, as disputas entre irmãos que outrora encantavam multidões com suas vozes casadas revelam que o parentesco não basta para manter a unidade. 

É preciso que haja maturidade emocional, clarezacontratual e, acima de tudo, humildade para reconhecer que, mesmo entre irmãos, o talento é coletivo e o mérito, compartilhado, ignorar isso é transformar o palco em tribunal, a melodia em dissidência, a herança em ruína. 

Essa deserção do compromisso, além de ser juridicamente inaceitável, encontra repúdio nas tradições teológicas que moldam há milênios o conceito de aliança. 

Nas três principais religiões abraâmicas — o Judaísmo, o Cristianismo e a Islã — a aliança é sagrada, e sua ruptura injustificada representa mais do que uma falha ética: configura um pecado com profundas consequências morais e sociais.

Na tradição cristã, a soberba é descrita como o princípio de toda queda: “A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito precede a queda” (Provérbios 16:18), O artista que, guiado por vaidade, rompe com aquele que o sustenta, envelhece com altivez de espírito, no Novo Testamento, a Carta de Tiago adverte: “De onde vêm as guerras e contendas entre vós? Não vêm das paixões que lutam dentro de vós?”(Tiago 4:1), essa guerra íntima, entre o ego inflado e a memória da lealdade, é causa de tantas rupturas destrutivas, e, a Escritura Sagrada orienta o caminho da humildade, do reconhecimento do outro, da partilha — valores ausentes quando a fama cega. 

No Judaísmo, a Torá valoriza profundamente os pactos e a confiança mútua, o rompimento de uma aliança não é mero erro civil, mas transgressão à ordem moral, em Êxodo 20:16, está dito: “Não darás falso testemunho contra o teu próximo”, e, em Levítico 19:13: “Não oprimirás o teu próximo, nem o roubarás; o salário do trabalhador não cairá contigo até pela manhã”a traição de uma parceria artística, sobretudo quando acompanhada da supressão de dividendos, da omissão do mérito alheio ou da reescrita distorcida dos fatos, é interpretada como infração direta a esses preceitos, mais do que descumprir um contrato, viola-se um mandamento. 

No Islamismo, será a condenação da arrogância inequívoca. “E não andes pela terra com arrogância, pois tu não podes fender a terra, nem alcançar as montanhas em altura” (Surata Al-Isra, 17:37), aaltivez daquele despreza o outro em razão de sua própria visibilidade é repudiada como um dos maiores vícios morais, Deus no idioma árabe significa Allah ordena a justiça e a fidelidade: “Cumpri o pacto, porque o pacto será questionado” (Surata Al-Isra, 17:34), neste caso, o artista que ignora os vínculos firmados — com o parceiro, com o investidor, com sua própria origem — age contra os princípios do Tawhid – vem da raiz árabe “wahhada”, que significa “unir” ou “fazer um” – da retidão e da lealdade. 

As três tradições convergem em torno de um núcleo comum: a vaidade corrompe, a fidelidade santifica, sendo que o artista, como qualquer ser humano dotado de dons, é apenas guardião de um talento que não lhe pertence em essênciaé apenas fiduciário de algo maior — seja chamado dom divino, graça, barakah ou berachah, usá-lo para oprimir, excluir ou apagar quem o acompanha é falhar como intérprete da própria missão.

Se, o Direito positivo pode condenar a quebra do contrato, a teologia condena a quebra da aliança,se o juiz pode determinar a indenização, o eterno exige arrependimento, no palco da vida, há contratos que vão além das cláusulas, são pactos de sangue, de suor, de história, a voz do sucesso, portanto, não deve entoar soberba, mas gratidão.

Esse contexto encontra eco e alerta nos três livros sagrados da humanidade: Na Bíblia, nos oferece a figura de Caim e Abel, onde a inveja fratricidadestrói a benção do altar; Na Torá reforçar em Bereshit (Gênesis) o dever de lealdade entre irmãos: “Disse Esaú: tenho muito, meu irmão; seja teu o que tens” (Gn 33:9), revelando que a reconciliação vale mais que qualquer bem terreno; No Alcorão, na Surata Yusuf, retrata com sobriedade a traição dos irmãos de José e a posterior elevação do traído, que perdoa com dignidade, em todas essas escrituras, o rompimento entre irmãos não é apenas uma tragédia familiar, mas um sinal de falência moral.Todos apontam para a redenção possível na reconciliação, na humildade e no reconhecimento da dádiva compartilhada.

Na jornada artística, isso implica que mesmo os vínculos de sangue, quando prejudicados pelo orgulho, acumulam ruínas, mas quando consagrados pela consciência ética e espiritual, acumulam legados. 

O artista — em solo ou em dupla — precisa, portanto, ser mais do que voz: deve ser elo, o elo com sua origem, com seus pactos, com sua verdade, pois não há aplauso que substitui a paz com a própria consciência, e não há palco que sustenta o vazio de quem canta sozinho por escolha, e não por destino.

A era digital transformou o palco em tela e a canção em conteúdo, não basta mais compor ou cantar: o artista, em carreira solo ou em formação de dupla, tornou-se gestor de sua própria imagem,curador de seu cotidiano, estrategista de engajamento. 

A música precisa se apresentar em streaming, viralizar no TikTok, render reels no Instagram, manter o canal ativo no YouTube, ser convertida em dados, relatórios e contratos de patrocínio, o talento, por si só, já não basta: exige-se presença, constância e visibilidade, a arte, que sempre foi linguagem da alma, foi realizada à lógica do algoritmo

Nesse cenário, os artistas se veem otimistas a gerar conteúdo incessantemente, competindo não mais apenas entre si, mas com influenciadores, tendências de humor e ciclos voláteis de atenção. 

visibilidade é moeda, e a métrica substituiu o mérito, mas é nesse ponto que o risco moral cresce: ao enxergar a fama como conquista exclusivamente individual, o artista corre o perigo de invisibilizar os elos que o sustentam, ou seja, o empresário que entregou sua estratégia, o produtor que lapidou, o parceiro que dividiu os palcos, o investidor que acreditou, plantou e apostou seus recursos, uma vez apagados da narrativa, tornam-se vítimas do revisionismo triunfante.

E o Direito não tolera o revisionismo que apague a origem, a figura do investidor, em especial, deve ser tratado com reverência contratual e integridade ética, posto que ao investir na arte, esse agente assume riscos que ultrapassam os cálculos financeiros: aposta na abstração, no potencial, na emoção futura, mas, infelizmente com frequência, quando o sucesso chega, ele é rotulado como aproveitador — injustamente, como se fosse intruso e não pilar.

Essa inversão não é apenas a moralidade, mas o equilíbrio das relações jurídicas, pois o investimento artístico, ao contrário do que muitos pensam, não é lucro certo — é, muitas vezes, acúmulo de prejuízo e frustração. 

O artista que atinge o estrelato e tenta anular o seu contrato assinado sob pretexto de ter sido enganado, ludibriado ou por vício de consentimento, comete, antes de uma infração contratual, um ato de ingratidão institucional, e esta ingratidão, além de repulsa moral, causa desestímulo sistêmico. Pergunta-se: Quem apostará num novo talento se a história provar que, ao florescer, ele nega suas raízes?

Há que se reconstruir a ética da memória, ter gratidão por aquele que esteve presente antes dos holofotes não é apenas um gesto nobre — é justiça, pois, ao final, o que permanece não são os milhões de acessos, os shows com cachês elevados – que, muitas das vezes, não fecham as contas dos ingressos vendidos por seus contratantes – os milhões de reais arrecadados com as músicas, as antecipações milionárias das gravadoras ou ainda, os contratos publicitários, mas o respeito que se conquistou ao longo da caminhada, quando o aplauso cessar e as luzes se apagarem, o que sustentará a história de um artista é a coerência entre sua palavra trajetória

memória é o juízo silencioso dos que não podem mais falar, entendo ser dever do artista, em qualquer estágio de sua carreira, manter vivos os nomes que permitiram que sua voz ecoasse, pois enquanto a fama passa, a verdade permanece, e, é ela — e somente ela — que outorga o verdadeiro legado. 

No Direito, tão importante quanto pactuar, é manter e honrar o pacto, e se a arte depende do improviso, os vínculos que a sustentam não podem ser improvisados.

A relação entre artista, investidor, empresário, produtor ou parceiro de palco deve estar ancorada não apenas na confiança subjetiva, mas em instrumentos contratuais redigidos com técnica, prudência e sobriedade, a confiança pode emocionar, mas é o contrato que resguarda as partes.

A trajetória de muitos artistas é marcada por uma fase inicial de informalidade: acordos verbais, compromissos por mensagens, promessas feitas entre amigos e parentes, quando o sucesso ainda é semente, ninguém pensa em adubar o solo jurídico, mas à medida que os frutos surgem, vêm também os conflitos, e com eles a tentativa de reescrever os termos da relação — quase sempre a favor de quem obteve a maior ascensão. 

Nessa hora, o Direito ergue seu véu protetor, a ruptura unilateral de uma parceria artística sem legitimidade, especialmente quando acompanhada da tentativa de invalidar obrigações assumidas, esbarra nos princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e da vedação ao comportamento contraditório, mentiroso e ganancioso.

O artista que, após alcançar notoriedade, pretende desfazer-se do investidor ou do parceiro,invocando como justificativa o próprio sucesso, incorre em abuso de direito, e o ordenamento jurídico repudia com rigor a ideia de que a fama anula a origem. 

A boa-fé objetiva não exige apenas que se cumpra o que foi pactuado — exige lealdade, transparência, respeito à confiança alheia e ordenação de trair expectativas legitimamente formadas.

Romper com quem esteve ao lado na formação da carreira, omitindo ou distorcendo a contribuição dele, fere esse postulado, sendo inadmissível que alguém construa uma imagem pública de benefícios sustentada sobre o silêncio cúmplice da injustiça. 

Mais do que isso, o enriquecimento sem causa — figura clássica no Direito das Obrigações — passa a ser evidente, o artista que capitaliza sobre uma estrutura financiada por outro, sem honrar o direito de participação, retém vantagens indevidas, na medida que advém o sucesso financeiro, quando nascido da estrutura criada em parceria, não pode se tornar solo apenas por conveniência e oportunidade rasa.

E quanto aos contratos celebrados informalmente? A justiça reconhece a existência de vínculos obrigacionais mesmo em cenários marcados por informalidade, desde que apresente os elementos essenciais da obrigação: consentimento, objeto lícito e valor mensurável. 

Há diversas formas de provas, que podem ser utilizadas, como as mensagens trocadas, os áudios enviados, os comportamentos reiterados e a comprovação dos investimentos, o suficiente para garantir a legitimidade do vínculo — ainda que sem assinatura formal. 

É fundamental, portanto, que os contratos que regulam relações artísticas prevejam cláusulas de partilha, prêmios, continuidade, rescisão, sucessão, créditos e uso de nome, imagem e obra, as cláusulas que garantem a proporcionalidade do retorno ao investidor, a preservação da parceria em caso de divergência e a possibilidade de arbitragem prévia à judicialização, somente assim se pode construir uma base jurídica sólida para o voo artístico.

Por fim, o contrato não é apenas um instrumento de cobrança — é, acima de tudo, um monumento de memória, ele diz: “estivemos juntos, assumimos riscos, dividimos sonhos”, ignorar isso é mais do que inadimplência, um pecado, ganância e deslealdade com a história.

E para aqueles que acreditam que a notoriedade os autoriza a apagar as relações obrigacionais, o Direito responde com firmeza: a fama não é estratégia de justiça, e o brilho de uma estrela não apaga o fio de compromisso que a sustenta

Ao fim desta travessia argumentativa, entre vozes casadas e caminhos solitários, entre contratos esquecidos e alianças desfeitas, entre cifras de streaming e silêncios emocionais, resta uma pergunta que transcende cláusulas e cifras: O que faz uma carreira ser legítima?

Com todo respeito as demais opiniões, não são os números, não é o engajamento, tampouco a projeção internacional, é, sim, a fidelidade à origem, o respeito ao caminho percorrido, a honestidade com os pactos que permitiram sua ascensão para que a música ecoasse, em um tempo em que o artista virou produto, onde o palco virou post e a canção virou algoritmo, preservar a verdade é ato de resistência moral, é lembrar que por trás de toda ascensão há uma história, e toda história merece justiça.

Se a primeira voz representa a melodia, e a segunda voz representa o corpo harmônico, então o investidor é o sopro inicial — a respiração do invisível que antecede o som, apagá-lo é mutilar a narrativa, negar sua importância é praticar a injustiça do silêncio, e o artista que compactua com esse tipo de exclusão não apenas trai o pacto jurídico, trai as escrituras — trai a própria identidade.

Nas Escrituras, esse alerta é reiterado, a Bíblia segundo Mateus adverte: “Toda árvore que não produz bons frutos será cortada e lançada ao fogo” (Mt 7:19), e que frutos são esses, senão a justiça, a gratidão e a integridade? a Torá, por sua vez, valoriza a permanência do pacto: “O Senhor teu Deus é fiel,que guarda o pacto e a misericórdia até mil gerações com aqueles que O amam e guardam Seus mandamentos” (Devarim 7:9), o Alcorão declara, com retidão firme: “E cumpriu o pacto, pois do pacto se pedirá conta” (Surata Al-Isra, 17:34). 

Esses três textos sagrados não divergem, unem-se para dizer que não há sucesso lícito sem justiça, que não há contrato verdadeiro sem lealdade, que não há voz que permaneça quando está isolada da ética.

Eis, então, o chamado final desta obra: que o artista compreenda que sua carreira é instrumento, e, nãoum trono, que sua voz é caminho, e, não uma coroa, e que seu compromisso é mais profundo do que palcos, cifras e fama, pois, quando a última nota soar e a luz se apagar, restará apenas o legado — e este será tão digno quanto foi o seu caminho. 

A voz do sucesso não é apenas a que canta, é a que se cala diante da vaidade e do ego, é a que reconhece, que tem gratidão, a que retribui, a que preserva, é a voz do compromisso!

*ADIB ABDOUNI, Advogado Constitucionalista e Criminalista, Professor, Escritor e Reitor Licenciado.

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