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O inaceitável Projeto de Lei nº 6204/2019 – “Desjudicialização da execução civil”

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O Projeto de Lei n.º 6204/2019 estabelece a desjudicialização da execução civil de títulos executivos judiciais e extrajudiciais, impondo um procedimento extrajudicial a ser conduzido perante um “tabelião de protestos”.

Múltiplas são as razões para a sua imediata rejeição. Vejamos algumas delas.

1 – Violação do acesso à justiça

Essa diretriz legislativa – da forma como apresentada – caminha na contramão do acesso democrático à justiça, ao restringir o direito do jurisdicionado de recorrer ao Judiciário para tutelar seus interesses. A proposta infringe diretamente o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que garante que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Ao delegar a execução civil por expropriação de quantia para um ente privado (tabelionatos de protesto), a norma impõe um caminho obrigatório ao credor, limitando a sua liberdade de escolha e impedindo-o de recorrer diretamente ao Judiciário.

O fato de o PL 6204/2019 não impedir o controle do Poder Judiciário em relação aos atos executivos, sempre que provocado pelas partes ou pelo denominado agente de execução, em nada arrefece o absurdo da obrigatoriedade e compulsoriedade do caminho extrajudicial. O que os artigos 20 e 21 do PL preveem não é nada mais do que o óbvio e, ainda assim, necessitam ser melhorados e adequados aos remédios do CPC.

2 – Justiça multiportas

A previsão do PL desconsidera – está desconforme – o modelo constitucional de “justiça multiportas”, amplamente defendido e implementado na atual sistemática constitucional processual brasileira e estrangeira em países democráticos. Este modelo permite que os jurisdicionados optem pelo meio de resolução de conflitos que melhor atenda aos seus interesses, seja o Judiciário, a mediação, a arbitragem ou outras formas alternativas de solução de litígios. O projeto, ao obrigar/impor a via extrajudicial, destitui o credor de sua autonomia para optar pela melhor estratégia de satisfação de seu crédito. Torna-o refém da execução extrajudicial.

3 – Exclusividade dos tabelionatos de protesto como agentes de execução

O projeto de lei define que apenas os tabelionatos de protesto desempenharão a função de agentes de execução, excluindo, por exemplo, outras serventias extrajudiciais e, notadamente, os advogados. Não há razão jurídica minimamente séria que justifique essa exclusividade, uma vez que a experiência dos tabelionatos de protesto se limita ao ato de protesto, que não abrange a complexidade dos atos executivos, como penhora, avaliação, expropriação e alienação de bens. Supor que a experiência dos tabelionatos de protesto os capacita para a execução forçada é um equívoco, pois a atividade de protesto não envolve todos os atos executivos da expropriação. Não possuem experiencia em arresto, em penhora, em depósito, em avaliação em alienação etc.

A execução por expropriação é fenômeno infinitamente maior que atos de protesto que, na execução judicial, é ato eventual opcional do credor. Registre-se que o próprio projeto de lei reconhece a falta de capacitação dos tabeliães de protesto para a execução, prevendo, no artigo 22, a referida capacitação antes da vigência da norma.

4 – Por que não os advogados como agentes de execução.

Não se justifica a exclusão dos advogados da possibilidade de que possam atuar como agentes de execução, uma vez que – ao lado dos juízes e dos auxiliares de justiça – possuem vasto conhecimento técnico aprofundado sobre o todo o processo executivo e sua sistemática. Registre-se que isso nem seria novidade ou ineditismo pois os modelos estrangeiros, inclusive o que serviu de base para a proposta, preveem que o advogado pode atuar como agente de execução. Caso se argumente que a falta de um controle adequado possa comprometer a segurança jurídica, o problema poderia ser resolvido com a regulamentação específica para a referida atividade. Não se descarta, inclusive, a criação da profissão de “agente de execução”, a ser preenchida por concurso público. O que não faz nenhum sentido é criar uma reserva de mercado, obrigatória, para um segmento específico que são as serventias de protesto.

5 – A obrigatoriedade do protesto e a afronta à livre disponibilidade dos atos executivos

Outro ponto problemático do PL 6204/2019 é a previsão de um protesto obrigatório do título como condição para a execução extrajudicial (arts. 6º e 14). Além de ser um procedimento custoso, essa exigência viola o artigo 775 do Código de Processo Civil, que garante ao exequente o direito de decidir sobre os atos executivos que julgar mais eficazes para a satisfação de seu crédito. Ao impor uma medida compulsória, o projeto restringe a liberdade do credor, obrigando-o a arcar com um custo que, em algumas situações, pode não ser estratégico ou vantajoso. Assim, a previsão do protesto como requisito para a execução representa uma oneração excessiva e desnecessária.

6 – A experiência da execução extrajudicial no sistema financeiro de habitação e sua impertinência como justificativa de sucesso

A experiência da execução extrajudicial no Sistema Financeiro de Habitação não pode ser utilizada como argumento para antecipar o sucesso deste projeto. Pelo contrário, o modelo de execução extrajudicial do sistema financeiro se baseia em uma escolha do jurisdicionado, que ao adquirir o crédito habitacional, opta por aderir a um sistema específico de execução extrajudicial. Assim, a não obrigatoriedade é óbvia e respeita a autonomia da vontade das partes envolvidas.

7 – A promessa ilusória de execuções extrajudiciais frutíferas

O insucesso das execuções para pagamento de quantia no Brasil — evidenciado pelos dados do CNJ — decorre, majoritariamente, da inexistência de patrimônio do devedor. A inadimplência de mais de 60 milhões de brasileiros não resulta, em regra, da ocultação de bens ou de entraves burocráticos, mas da simples ausência de recursos.

Isso é básico. Não há solução mágica que crie patrimônio onde ele não existe, daí porque a exposição de motivos do PL parte de uma premissa equivocada. Nem mesmo a maior eficiência dos cartórios transformará um devedor insolvente em solvível, tornando falaciosa a ideia de que a execução extrajudicial resolveria a questão.

Além disso, diga-se de passagem, o êxito das execuções extrajudiciais no sistema financeiro mencionado no parágrafo anterior também não justifica sua generalização, pois nesses casos há garantias reais – o próprio imóvel – que mitigam os riscos de insucesso.

O mesmo ocorre com o protesto de títulos em cartório, cujo sucesso não pode ser tomado como parâmetro sem considerar a parte (títulos executivos extrajudiciais que são efetivamente protestados) com aqueles todos os demais que aparelharão a execução extrajudicial para pagamento de quantia.

Portanto, é desprovida de qualquer base estatística a afirmação de que a execução extrajudicial, de forma ampla e irrestrita, seja uma solução eficaz para todos os tipos de débitos revelados nos mais variados títulos executivos. Como se disse, num país como o Brasil, o problema da execução ser infrutífera é a falta de patrimônio do devedor.

8 – Desjudicialização parcial

Não há justificativa para vedar a desjudicialização facultativa, pois, além de estar em conformidade com os ditames constitucionais, é de se dizer que as experiências estrangeiras, como no caso da Espanha e de Portugal, produzem exemplos valiosos sobre caminhos a serem seguidos — e evitados.

Uma alternativa viável a ser adotada pelo Brasil e constante de modelos estrangeiros seria a desjudicialização restrita aos atos executivos, mantendo a propositura da demanda no Judiciário e permitindo que apenas os atos concretos de execução, caso desejado pelo exequente, ocorresse extrajudicialmente.

Esse modelo preservaria vantagens essenciais, como a organização, a segurança de que apenas atos de execução seriam desjudicializados (a realização do juízo de admissibilidade da execução seria sempre pelo magistrado), além do que garantiria com absoluta agilidade e previsibilidade o acesso judicial ao órgão judicial competente para eventuais recursos e medidas de controle dos atos do agente de execução – tudo isso sob o crivo do advogado.

Além disso, facilitaria a comunicação entre o processo judicial e os atos do agente de execução. Mas não só isso, manter-se-ia um regime único para execuções definitivas e provisórias, algo que no PL é impossível pois ele está limitado a desjudicialização das execuções definitivas de pagar quantia, caso em que manter-se-ia o cumprimento provisório da sentença, caso iniciado, na justiça estatal.

Há, ainda diversos outros fatores que recomendam que a execução sempre se inicie no Judiciário. Para um exame mais aprofundado dessa iniciativa e de suas possibilidades, registre-se que um dos subscritores desta resenha integrou o grupo de juristas responsável pela elaboração de um anteprojeto de lei de desjudicialização, alinhado ao Código de Processo Civil.

Esse anteprojeto foi apresentado à Comissão de Juristas do CNJ, da qual também participou, dedicada à formulação de propostas legislativas para aprimorar a execução civil no Brasil, e pode ser consultado para uma análise mais detalhada.

8 – Conclusão

Não se trata de rejeitar a necessária ampliação do acesso à justiça nem de ignorar a legítima tendência à desjudicialização. Contudo, esse processo deve ser conduzido com democracia, prudência e cautela. O projeto de lei em debate é inaceitável e não oferece soluções adequadas para aspectos fundamentais da atividade estatal executiva, como já apontado pela doutrina especializada.

Flavio Cheim Jorge, mestre e doutor PUC-SP, professor titular da UFES, advogado, consultor jurídico e conselheiro federal da OAB-ES

Marcelo Abelha Rodrigues, mestre e doutor PUC-SP, professor titular da UFES, advogado e consultor jurídico

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