O direito é formado por um complexo de normas jurídicas, ligadas a uma sanção cominada à sua violação. Embora como instrumento que rege a vida dos homens, é importante salientar que o direito penal deve ser ideologicamente neutro.
De modo que transformar em crime qualquer comportamento que contrasta com os valores da sociedade, conferindo carta branca ao legislador, sem sopesar, no entanto, se esses valores estão contrários aos avanços sociais, ou se estão indo de encontro aos regramentos e princípios constitucionalmente protegidos de uma sociedade, é de igual forma transformar o direito penal num instrumento de apoio aos regimes totalitários.
O Aborto sentimental é aquele praticado para interromper a gravidez resultante do estupro. Perante o Código Penal brasileiro não há restrição, no tempo, para que a vítima (meninas e mulheres estupradas) decida pelo abortamento.
O escopo da lei penal permissiva foi evitar exatamente a maternidade odiosa, proveniente de estupro que recordará à mulher, perpetuamente, o horrível episódio da violência sofrida.
A imposição dessa limitação temporal trazida pelo PL, criminalizando o aborto após de 22 semanas de gestação, deve se coadunar com os princípios que regem o direito penal, o que, salvo melhor juízo, não foi observado na proposta legislativa em análise.
Há clara violação aos princípios constitucionais penais. O PL não respeitou a fragmentariedade do direito penal e sua utilização como a ultima ratio. O Direito Penal é subsidiário, e suas normas penais incriminadoras só se legitimam quando inevitáveis, ou seja, quando as repostas ofertadas pelo Estado por outros ramos restarem insatisfatórias, e não como primeira e única opção.
O aborto é uma realidade social, e sobre a sua moralidade, variam as opiniões. Vivemos em um Estado laico, e projetos de leis de cunhos religiosos, inviabilizam a unidade de pensamento sobre essa complexa questão.
E a sua limitação temporal refoge da finalidade do Direito Penal, quando na verdade, deveria ser resolvido, por primeiro, atraves de politicas públicas voltadas para a saúde das vítimas de estupro, evitando eventuais negativas ou atraso no aborto seguro.
A criminalização do abortamento tardio, há de ser o ultimo movimento para que o Estado garanta a saude pública das meninas e mulheres vítimas de estupro. Somente politicas públicas positivas são capazes de propiciar imediatamente a tutela efetiva da saúde física e psicológica de tais vítimas.
Leis penais que nascem tão somente para acalentar a sociedade não se legitimam, exatamente porque são inoperantes e inaplicáveis, contribuindo apenas para o descrédito do Estado e no próprio direito punitivo.
A imposição de pena de homicídio às vítimas de estupro é capaz de ostentar características de penas cruéis e infamantes, o que seria um retrocesso e uma violação ao princípio da humanidade das penas, consectário da dignidade humana.
Na forma sugerida pelo PL, a equiparação às penas do homicídio viola os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade da pena, pois além de não reprimir a conduta proibitiva, viola a dignidade da própria vítima de estupro. De acordo com o PL, as vítimas de estupro estarão sujeitas a sofrer sanções superiores às penas atribuída ao seu agressor pela prática do estupro.
Nos termos do PL (§2º, do art. 124 do CP), o legislador prevê o instituto do perdão judicial, no entanto, não procura discutir, nesse particular, sobre a voluntariedade da conduta da vítima de estupro que pratica o aborto tardio.
E quando a vítima de estupro é apenas uma menina que, ao longo de sua infância, vem sendo abusada e ameaçada pelo parente mais próximo, que, por vergonha ou medo, esconde a gravidez? O presente PL não se desincumbiu em responder.
O assunto é bastante polêmico. Então, merece essa vítima de estupro ser considerada culpada e condenada, para, somente após, ao bel prazer do juízo criminal, receber a clemência do Estado? No instituto do perdão judicial o agente é aliviado de um profundo sofrimento moral, sob o argumento segundo o qual o sentimento de culpa da condenada que persistirá por muito tempo, quando não por toda a vida.
No caso da vítima de estupro, ainda terá que conviver com uma sentença penal condenatória, com seu nome na lista de rol de culpados e com um perdão judicial dando conta que: Tu foste estuprada. Tu abordaste um filho fruto do teu estupro, logo, tu és assassina. Mas o Estado juiz te perdoa, porque, eventualmente, tenha dificultado o teu acesso à saúde pública, ou através de uma negativa ou através de um aborto tardio!
A criminalização do aborto tardio, após as 22 semanas de gestação é absolutamente inconstitucional e a sua equiparação ao crime de homicídio não têm o condão de intimidar a prática delitiva, pelo contrário, a clandestinidade persistira, dessa vez, sem qualquer tutela oferecida pelo Estado, nem mesmo a tardia.
Restando para as vítimas de estupro, além da revitimização, as seguintes opções: ou ela é presa pelo crime de aborto tardio, cujo o tratamento será igual ao dispensado ao crime de homicídio, ou ela é obrigada a gerar um filho do seu estuprador.
Ou, talvez, por sorte, seja perdoada por um juízo criminal piedoso, aplicando-lhe, a seu bel prazer, o perdão judicial.
As vítimas de estupros, meninas e mulheres, não precisam de clemência, mas de respeito do Estado!
Reservemos o cárcere aos seus violadores!
Aurilene Uchôa de Brito é conselheira do Conselho Federal da OAB Nacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). presidente da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado do Amapá – ABRACRIM/AP. Também é presidente da Câmara de Mediação e Arbitragem do Amapá – CAMAP. Na OAB Nacional, exerce ainda as funções de vice-presidente da Comissão Nacional de Estudos Penais e membro da Comissão Nacional de Arbitragem. É professora de Direito Penal do curso de pós-graduação da Escola Superior da Advocacia e professora de Direito Penal e Legislação Penal da Faculdade Madre Tereza – FAMAT e do Centro de Ensino Superior do Amapá – CEAP.
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