O cinema, com sua habilidade única de traduzir realidades sociais em narrativas envolventes, por vezes nos oferece obras que, além do entretenimento, despertam reflexões profundas. O filme ‘Uma Advogada Brilhante’, estrelado por Leandro Hassum, é um desses exemplos. A comédia acompanha um advogado que, ao perder o emprego em um escritório que busca equiparar o número de homens e mulheres na equipe, decide se passar por mulher para manter seu cargo. A partir dessa inversão de papéis, a produção expõe, com ironia e sagacidade, o quanto as mulheres ainda precisam lutar para serem reconhecidas e respeitadas no ambiente profissional.
Infelizmente, a realidade nem sempre tem o tom bem-humorado do cinema. As advogadas no Brasil – que hoje são maioria na profissão, representando 50,8% da advocacia nacional – enfrentam desafios diários que vão desde a desigualdade salarial até o preconceito velado em espaços de poder. A ascensão feminina na advocacia é uma conquista inegável, mas ainda há muito a avançar para garantir que essa representatividade se traduza em igualdade de oportunidades.
A advocacia, durante séculos, foi um reduto masculino. Em 1899, quando Myrthes Gomes de Campos se tornou a primeira mulher a advogar no Brasil, o simples fato de uma mulher estar em um tribunal causava espanto. Hoje, ocupamos cargos de liderança no Conselho Federal da OAB, presidimos seccionais da Ordem e participamos ativamente das decisões institucionais. Ainda assim, a presença feminina no topo da hierarquia da advocacia e do Judiciário é um reflexo tardio de uma luta árdua. Dos 27 tribunais estaduais brasileiros, apenas três são presididos por mulheres. No Supremo Tribunal Federal, das 11 cadeiras, apenas uma pertence a uma mulher.
A resistência à mudança ainda perdura, com a decisão em caráter liminar de suspender o processo do Quinto Constitucional no Tribunal de Justiça de Sergipe sendo mais uma prova disso. Em um momento histórico, quando a OAB/SE busca garantir critérios mais justos e inclusivos para a formação da lista sêxtupla – com reserva mínima de 50% das vagas para mulheres e 30% para a advocacia negra –, vimos a Justiça ser acionada em uma tentativa de retrocesso travestida de questionamento jurídico. Argumentos frágeis são usados para barrar avanços que deveriam ser celebrados. O incômodo não é técnico, mas sim a quebra de um ciclo de privilégios que, há décadas, restringe o acesso aos tribunais a um grupo seleto e pouco representativo da classe.
Mas essa resistência ao avanço não nos surpreende. Como mulher, nordestina e advogada, já vivenciei desafios que me ensinaram que mudanças nunca vêm sem resistência – e jamais ocorrem sem muita, muita luta! Cada direito conquistado precisou ser arrancado a fórceps, e cada espaço ocupado exigiu uma mobilização incessante. O Dia Internacional da Mulher não é, portanto, apenas um momento de celebração, mas de reafirmação do nosso compromisso com a equidade, a representatividade e a transformação das estruturas que historicamente nos excluíram.
E é por isso que as mudanças precisam ir além das datas simbólicas. O respeito à mulher não deve ser pauta apenas em março, assim como a luta contra o racismo não deve ser lembrada somente em novembro. Mulheres são mulheres todos os dias. Pessoas pretas nascem, vivem e morrem pretas. As questões que dizem respeito à equidade e à justiça não podem ser colocadas em um calendário de lutas eventuais e, por lá constarem, serem somente alvo de “olhares” nos respectivos dias.
Por tantas razões, aproveito este espaço para reafirmar o compromisso da atual gestão do Conselho Federal da OAB com a promoção da igualdade de gênero e raça na advocacia. Seguiremos implementando ações concretas para garantir que todas as advogadas tenham oportunidades reais de crescimento e que o Quinto Constitucional de Sergipe reflita, de fato, a diversidade da classe.
A OAB tem um papel fundamental na defesa das prerrogativas da advocacia, mas também deve ser um espaço de construção coletiva por um presente mais digno e um futuro que abrigue e celebre a todos, sem distinção. Convido cada advogada e advogado a participar ativamente dessa transformação. O tempo do monopólio masculino nos espaços de poder está chegando ao fim, e a resistência que enfrentamos hoje será, em breve, lembrada como mais um obstáculo superado.
Porque nenhuma ação de grupos em busca de manter privilégios pode barrar o curso da história!
Rose Morais é secretária-geral do Conselho Federal da OAB
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